5.12.05

Que país é esse? (1)

O título sugere que haverá mais posts com a mesma indagação. É isso mesmo! Leiam o texto transcrito abaixo, extraído do site www.nominimo.com.br e vejam se o título não é pertinente. O problema é que eu penso e digo a frase título todos os dias, às vezes até mais de uma vez.

"O lado certo da vida errada

Marcos Sá Corrêa

04.12.2005 - Para quem foi à Bahia menino, lá pelos anos 50 ou 60, nada tinha mais gosto de pimenta do que a visita ao Instituto Nina Rodrigues, onde ficavam expostas, em pedestais parecendo bandejas de frutas, as cabeças mumificadas do bando de Lampião. Eram escuras, murchas, de feições irreconhecíveis. Teoricamente estavam ali para provar, segundo o diretor Estácio de Lima, que o cangaço não foi uma erupção espontânea de criminalidade, gerada no sertão nordestino por bandidos “natos, lombrosianos”, mas o produto de causas “sociais, políticas e econômicas”. Patati-patatá. Os adultos e sobretudo as adultas passavam batidos pelos troféus da medicina legal. Mas a infância, sendo no fundo uma forma volátil da selvageria, tem suas prerrogativas no exercício da curiosidade mórbida. E todo garoto que se prezasse esticava a visita, encarando o capitão Virgulino Ferreira, sua mulher Maria Bonita e os jagunços mitológicos etiquetados com seus apelidos de eternos imaturos: Corisco, Zabelê, Canjica, Azulão... Acabaria levando para sempre na cabeça aquelas cabeças. E mais tarde, muito depois de enterradas em 1971 por exigência de seus herdeiros legais e dos novos estatutos acadêmicos de decoro antropológico, elas lhe serviriam para lembrar que os soldados das volantes que decapitaram os cangaceiros eram, a rigor, farinha do mesmo saco. E nada que viesse a aprender depois sobre o labirinto sombrio em que, no Brasil, policiais e bandidos se enfrentam e se confundem teria a força desse encontro direto com a violência primordial. Nisso, pelo menos, o presidente Lula tem toda a razão. O livro da vida às vezes nos ensina alguma coisa. Mas nem tudo. Não ensina, por exemplo, a escrever sem enfiar dois erros e uma valente licença estilística em oito palavras, como ele fez esta semana no Conselho de Segurança Alimentar. “Tem demandas do Conselho que precisa ser discutido”, o presidente anotou à mão num papel que os brasileiros jamais leriam, se não passasse pelo olho clínico do fotógrafo Gustavo Miranda.Deixando de lado a troca do “há” pelo “tem”, a frase de Lula seria assunto para uma CPI do Analfabetismo Funcional, se o país já não andasse metido em tantas CPIs. É pena, porque se perde a oportunidade de esclarecer o que está acontecendo no governo. Melhor e mais rápido do que as outras comissões parlamentares de inquérito, ela arrombaria a trama de dissimulações que, tudo indica, a equipe de Lula foi tentada a montar em torno dele, para manter as aparências de um presidente em cujas mãos as demandas do Conselho que precisam ser discutidas viram “demandas do Conselho que precisa ser discutido”. Com um presidente que escreve assim, o governo Lula tem mesmo que ser o governo alheio – de José Dirceu, de Dilma Roussef, de Antônio Palocci, de quem estiver disposto a fazer o que ele não faz. Nesse caso, é até verdade que ele não sabe bem o que acontece em sua administração. Reservou-se para as figurações simbólicas do cargo. E a conspiração dos cupinchas, armada para poupá-lo do serviço pesado, acabou por embrulhá-lo em documentos que nunca lê e em assuntos técnicos que não digere.Diante das “demandas do Conselho que precisa ser discutido”, a versão de Lula para a própria crise fica mais plausível. Vai ver, ele é mesmo inocente de quase tudo. Só é culpado de estar sentado onde não deve, fingindo fazer o que nunca fez, enquanto seus amigos fazem o que não devem. No máximo, a oposição poderia acusá-lo de falsidade ideológica. E o país ganharia fôlego para tratar de coisas mais graves, como os sinais de que, por baixo da marola política, o mar começou a virar sertão.Senão, vejamos. Na sexta-feira em que o rascunho de Lula saiu no “Globo”, outro manuscrito anunciava nos jornais a execução sumária de quatro criminosos que incendiaram um ônibus no Rio de Janeiro para matar seus passageiros. O texto, assinado pelo Comando Vermelho Rogério Lemgruber e atribuído pela polícia ao traficante Marcelinho da Vila Cruzeiro, tem mais palavras e menos erros de concordância que o rascunho do presidente. E isso é o de menos. Os corpos foram encontrados num carro roubado. Ultimamente, no Rio, a imprensa deu para publicar as fotografias de cadáveres, quando os criminosos que a cidade procura são mortos pela polícia. Presume-se que sua exposição tenha caráter didático, como a dos cangaceiros no Instituto Nina Rodrigues. Pelo visto, a moda pegou. A encenação coreografada esta semana por Marcelinho da Vila Cruzeiro tinha mais ou menos o mesmo estilo da sangueira exemplar. Quem providenciou os quatro cadáveres ligou para a Delegacia de Repressão a Entorpecentes, comunicando a entrega dos corpos. A chefe do Serviço de Investigações da delegacia, inspetora Marina Magessi, viu no telefonema uma prova de respeito ao trabalho dos policiais. O cartaz do C.V.R.L anunciava a próxima execução. Do condenado já se sabe que é branco e manco. Tem cerca de 20 anos. Comando o tráfico do Morro da Fé. E se chama Lorde. A seu respeito só se desconhece o que a Secretaria de Segurança prentende fazer para prendê-lo antes que o tribunal do Morro da Chatuba ponha as mãos nele.Pintada em letras de forma num pedaço de papelão, a mensagem do C.V. R.L., o “lado certo da vida errada”, não se esqueceu de mencionar a “fé em Deus” que inspira seus atos. Num estado governado por um casal de evangélicos, que também usa a “”fé em Deus” para quase tudo, a invocação soa como o aviso definitivo que de que tudo, de repente, anda fora do lugar, como no tempo em que os soldados forneciam cabeças de cangaceiros a criminalistas e antropólogos. Vai ver, estamos todos no lado certo da vida errada."

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