25.7.06

O filhote do bicho

Um dos poucos poemas que sei de cor e nunca esqueci é "O Bicho", de Manuel Bandeira. Em minha época de estudante, quando ouvi pela primeira vez o Prof. Pedrinho (literatura) declamá-lo, e o acompanhei em leitura, ao me imaginar contemplando a cena ali narrada, surpreendi-me ao constatar que não era necessária a imaginação. E que eu já havia contemplado aquela cena inúmeras vezes. Desde então, todas as vezes que vejo alguém mexendo no lixo, lembro-me imediatamente do poema. Pra quem não se lembra, transcrevo-o:
"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem
."
O Prof. Pedrinho enfatizou a expressão "meu Deus", para dar a correta interpretação do poema. Digo correta interpretação porque a mim essa expressão sempre soou como um clamor do autor - e deve mesmo ter sido -, que por sorte foi devidamente captada e transmitida pelo narrador, naquela ocasião.
No último domingo, vi um filhote de bicho sendo carregado no colo, apressadamente, por um atendente de uma farmácia. O bom rapaz deitou o menino à sombra, deu-lhe água, um remédio qualquer e ficou abanando o garoto. No lugar em que eu estava - o McDonald's -, várias pessoas ficaram como eu, comovidas com a situação. Uma minoria chegou a murmurar que isso era por causa da "cola", como se o garoto estivesse sendo punido pelo hediondo crime de ser pobre e cheirar cola.
Atravessei a rua e fui ter com o bom rapaz que ajudou o menino. Ele me disse que o garoto esteve deitado na calçada desde que a farmácia abrira, em princípio na sombra, mas que já havia mais de uma hora que o garoto estava sob o sol, e que ele achou melhor ajudá-lo.
Pensei que talvez eu tivesse passado ao lado do garoto, e que nem tivesse notado sua presença...
Enquanto eu conversava, o menino já devorava o conteúdo de um marmitex.
Ofereci-me a levar o garoto a um hospital, mas não foi necessário. A água e a comida o restabeleceram...
Lembrei-me de novo do "bicho" de Manuel Bandeira. Esse era um filhote, de uma espécie em que as mães e o grupo o abandonam à própria sorte, para a involução, num darwinismo às avessas. Um legítimo filhote da espécie dos miseráveis.
Ao mesmo tempo, veio-me à mente as comemorações pelos nascimentos de tartaruguinhas, de baleinhas, de foquinhas... todo aquele cuidado com esses animaizinhos, mamadeiras, rações balanceadas, monitoramentos, todo aquele dinheiro investido... Não estou dizendo que a preservação da fauna e da flora seja ruim, longe disso. Só acho que temos que escolher melhor qual espécie deve ser preservada, quais os filhotes que temos que alimentar e monitorar prioritariamente. Só isso.

1 Comentários:

Às 2:38 PM , Anonymous Anônimo disse...

O poema de Bandeira faz-nos realmente pensar e lamentar... Quanto a seu pensamento diante e pós àquela situação, deveria ser mote para refletirmos e AGIRMOS em prol de um mundo melhor.

 

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